Joana de Sá
Luís Gonçalves Lira
Outubro 26, 2022
Criptoativos: o enquadramento no âmbito da relação jurídico-laboral
Os criptoativos são representações digitais de ativos baseadas em tecnologia blockchain, não emitidas por um banco central, instituição de crédito ou instituição de moeda eletrónica e que podem ser usadas como forma de pagamento numa comunidade que o aceite ou ter outras finalidades como a atribuição do direito à utilização de determinados bens e serviços ou a um retorno financeiro. Para este efeito, o termo “criptoativos” engloba as nomenclaturas que normalmente lhe são associadas, como tokens, coins, criptomoedas ou moedas virtuais.
No fundo, e dito de outra forma, os criptoativos representam “dinheiro virtual”, que ao contrário do “dinheiro real”, não pode ser levantado numa caixa multibanco, sem mais.
Assim, acabam por assemelhar-se, de certa forma, mais com as ações e obrigações, que obtêm um determinado valor de mercado e que, depois de vendidos, configuram então um valor de “dinheiro vivo”.
Em Portugal, ainda não são aceites como método de pagamento genérico na maior parte das instituições, designadamente estabelecimentos comerciais. Contudo, de notar que, durante certa fase, foram aceites como forma de pagamento por parte de empresas imobiliárias, bem como de empresas do setor automóvel.
Em concreto, no que às relações laborais diz respeito, levanta-se a questão de saber se estes criptoativos são passíveis de corresponder à obrigação retributiva de uma entidade empregadora.
Duas questões, forçosamente, se levantam:
- A qualificação dos mesmos, em que tipo de retribuição;
- A respetiva forma de tributação (e eventual sujeição a contribuições para os sistemas de previdência social).
O artigo 276.º, n.º 1 do Código do Trabalho prevê que: [a] retribuição é satisfeita em dinheiro ou, estando acordado, em prestações não pecuniárias – chamada retribuição em espécie. As referidas prestações não pecuniárias terão, porém, que: i.) destinar-se à satisfação de necessidades pessoais do trabalhador ou da sua família e não lhe pode ser atribuído valor superior ao corrente na região; ii.) não pecuniárias não pode exceder o da parte em dinheiro, salvo o disposto em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.
Ora, efetivamente, em bom rigor, não se poderá dizer que os criptoativos configuram o conceito de “dinheiro” no sentido habitualmente ao mesmo atribuído, dado que, neste caso, sempre se tratará de “dinheiro virtual”, sempre sujeito a venda para que possa ser convertido em efetivo dinheiro real.
Neste sentido, só com bastantes reservas podemos admitir, em face do atual quadro normativo, o cumprimento da obrigação retributiva desta forma.
É que, o pagamento da retribuição pressupõe uma disponibilização imediata de um crédito a favor do trabalhador, como compensação pelo trabalho desenvolvido em dado período. Ora, a ser possível o pagamento nesta modalidade, na nossa opinião, poderíamos pôr em causa o valor efetivamente acordado (ou coletivamente estabelecido) para recebimento pelo trabalhador, em determinada data.
Logo, a ser possível, certo será que dependerá, efetivamente, do acordo do trabalhador para o efeito. Sem prejuízo, cremos que há ainda um caminho a fazer relativamente ao tema, pois será essencial obter o enquadramento fiscal e, principalmente, no âmbito previdencial. Não se vislumbra, porém, que este tema esteja já espelhado na proposta de revisão ao Código de Trabalho em curso.
Sem prejuízo de tudo quanto antecede, as reservas ante manifestadas deixam de se verificar caso o pagamento em criptoativos ocorra relativamente a prestações facultativas, que a entidade empregadora decide disponibilizar aos trabalhadores sem que a tal esteja obrigada – como é o caso dos prémios e benefícios que, cada vez mais, ganham relevo na composição dos pacotes retributivos, motivados pela forte necessidade de atração e retenção de talento (vg. os planos de stock options, planos de seguros entre outros). Nestes casos, cremos haver liberdade de forma no que concerne à disponibilização dos referidos benefícios. Sem embargo, levantar-se-ão, ainda assim, as questões inerentes ao tratamento fiscal – que, apesar de começar a encontrar luz, ainda não é totalmente líquido em Portugal.