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Daniel Torres Gonçalves

Sócio | Coordenador da Unidade Económica de Saúde, Farmácia e Biotecnologia
PRA

Joana Aguiar Rodrigues

Associada Sénior | Competition & EU

Janeiro 2, 2023

O Novo Estatuto do SNS

Daniel Torres Gonçalves e Joana Aguiar Rodrigues explicam as novidades decorrentes do Novo Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Em Portugal, o direito à proteção da saúde constitui um direito fundamental, consagrado na Constituição da República Portuguesa desde a sua primeira versão, em 1976. Incumbindo ao Estado Português a sua tutela, veio, em 15 de setembro de 1979, com a Lei n.º 56/79, a criar-se o Serviço Nacional de Saúde (SNS), com o sobredito escopo de se assegurar o direito à proteção da saúde.

Mais tarde, em 1993, face à redação da então vigente Lei de Bases de Saúde (Lei n.º 48/90, de 24 de agosto), surgiu a necessidade de se reformular o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, algo que veio a suceder com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de janeiro, que criou o Estatuto com a configuração que hoje conhecemos (sem prejuízo de algumas alterações que foram surgindo).

Neste ano de 2022, quase 30 anos depois, foi, então, publicado o Decreto-Lei n.º 52/2022, de 4 de agosto, que, ao revogar aquele Decreto-Lei n.º 11/93, criou o Novo Estatuto do Serviço Nacional de Saúde – algo que decorre do contexto criado pela Nova Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro, que veio revogar a aludida Lei n.º 48/90, de 24 de agosto.

O legislador definiu, no preâmbulo daquele diploma, o objetivo de “independentemente da condição social, da situação económica ou da localização geográfica de cada um”, criar um SNS “mais justo e inclusivo, que responda melhor às necessidades da população mediante as necessárias reformas estruturais”.

Definindo o SNS como “o conjunto organizado e articulado de estabelecimentos e serviços públicos, dirigido pelo Ministério da Saúde, que efetiva a responsabilidade que cabe ao Estado na proteção da saúde e que presta cuidados de saúde (nas vertentes de promoção, prevenção, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos) e serviços de saúde, instrumentais à prestação de cuidados de saúde”, este diploma possibilita a integração de estabelecimentos do setor privado e social, desde que seja celebrado o pertinente contrato.

Uma das principais novidades prende-se, no entanto, com a criação de uma Direção Executiva do SNS. Prevista no artigo 9.º daquele normativo, àquela Direção são atribuídas as seguintes competências:

  • Coordenar a resposta assistencial das Unidades de Saúde [os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES), os Hospitais, os Centros Hospitalares, os Institutos Portugueses de Oncologia e as Unidades Locais de Saúde (ULS)];
  • Gerir a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI), incluindo a área de saúde mental, e a Rede Nacional de Cuidados Paliativos (RNCP);
  • Assegurar o funcionamento em rede do SNS, nomeadamente coordenando a criação, revisão e gestão das Redes de Referenciação Hospitalar;
  • Assegurar o alinhamento da governação clínica institucional com a governação de saúde;
  • Garantir a melhoria contínua do acesso ao SNS;
  • Definir as diretrizes a que devem obedecer os planos e programas de ação dos estabelecimentos e serviços do SNS;
  • Emitir normas e orientações relativas à integração de cuidados, serviços e redes do SNS;
  • Monitorizar o desempenho e resposta do SNS;
  • Promover a participação pública no SNS;
  • Assegurar a representação do SNS;
A criação deste órgão assume-se não só como uma inovação, mas igualmente como um desafio, já que, como o próprio legislador reconheceu no preâmbulo, “esta entidade assume competências antes cometidas a outras instituições, em especial, a gestão do acesso a cuidados de saúde”.O diploma viu, ademais, a necessidade de ressalvar a circunstância de a função da Direção Executiva do SNS se distinguir da do Ministério da Saúde, salientando a não ingerência deste último na coordenação operacional do SNS. Diferenciou, outrossim, as funções daquela Direção face às da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) – porquanto a esta caberá desempenhar funções ao nível do planeamento e gestão de recursos (financeiros e humanos), instalações e equipamentos – e às das Administrações Regionais de Saúde (ARS) – a quem competirá planear a alocação regional dos recursos.

Outro dos pontos mais controversos tem que ver com os recursos humanos. Neste âmbito, o novo Estatuto criou o denominado “regime de dedicação plena”. Neste sentido, este regime preceitua a possibilidade de os trabalhadores médicos dos estabelecimentos e serviços do SNS poderem exercer funções em regime de dedicação plena. Este regime – não aplicável aos trabalhadores médicos em regime de dedicação exclusiva e de trabalho a tempo parcial e incompatível com o exercício de funções de direção técnica, coordenação e chefia em instituições privadas e do setor social de prestação de cuidados de saúde (não se considerando como tal os consultórios médicos de profissionais individuais) – tem caráter voluntário e duração definida de três anos, dependendo a sua renovação da avaliação favorável pelo órgão máximo de gestão da instituição à qual o médico se encontra vinculado.

Sem prejuízo, de harmonia com o contexto atual, o novo Estatuto veio criar um Regime Excecional de Contratação, um Regime Excecional de Trabalho Suplementar e um Regime Excecional de Mobilidade, visando, nas palavras do legislador, dotar o SNS de uma “gestão mais flexível, num setor fortemente dependente de uma força de trabalho diferenciada que se pretende organizada em carreiras”. Os supramencionados regimes são já aplicáveis a todos os profissionais de saúde do SNS, ao contrário do regime de dedicação plena que, como se disse, abrange apenas os trabalhadores médicos (ainda que o diploma preveja a possibilidade futura de se vir a alargar a trabalhadores de outras profissões regulamentadas do setor da saúde, em termos a definir em legislação especial).

Por outro lado, o novo Estatuto dispõe sobre os recursos financeiros do SNS, reservando a sua segurança às verbas do Orçamento do Estado que lhe são destinadas. Nessa senda, ali se estatui que a dotação do Orçamento deve garantir a afetação de recursos necessários a um cumprimento eficiente das funções e objetivos, bem como à sustentabilidade financeira do SNS.

Ainda no que concerne à responsabilidade financeira pelas prestações de saúde, a mesma apenas será, na sua íntegra, atribuída a – além do Estado – utentes não beneficiários do SNS e às entidades que estejam a tal obrigadas por força de lei ou de contrato. Quanto aos beneficiários do SNS, é prevista a já existente isenção de pagamento de taxas moderadoras, ainda que as suas especificidades sejam determinadas em lei própria.

O novo Estatuto foca-se, ainda, na participação dos beneficiários e dos municípios no SNS, promovendo a intervenção daqueles nos processos de tomada de decisão que afetem a prestação de cuidados de saúde à população e destes no planeamento, na gestão e na realização de investimentos.

Por fim, o Estatuto veio rever o Regime de Criação, Organização e Funcionamento dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) – aqui se destacando a alteração da sua natureza jurídica, na medida em que passam a ser considerados institutos públicos de regime especial, dotados de autonomia administrativa e património próprio, com responsabilidades de contratualização da prestação de cuidados de saúde primários com a Administração Central do Sistema de Saúde – e dos Estatutos dos Hospitais, Centros Hospitalares, Institutos Portugueses de Oncologia e Unidades Locais de Saúde, atualizando-os.

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